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21 março 2007

No dia mundial da poesia

Hoje, num estudo de piano que estava a catalogar, encontrei, no verso, manuscrita e assinada por um tal Álvaro José (que eu não faço ideia quem tenha sido) esta pérola de poesia:

«Vemos do Feminino damas feias e formozas e muitas vezes as feias ter açoens mais generozas; o mesmo estamos vendo nas mesmas aves do ar, humas valem [pelo] brilho e outras pelo seu cantar.»

Lembrei-me logo deste delicioso momento d'Os Maias:

«D. Ana, depois de bocejar de leve, retomou a sua ideia:
— Sem contar que o pequeno está muito atrasado. A não ser um bocado de inglês, não sabe nada... Não tem prenda nenhuma!
— Mas é muito esperto, minha rica senhora! — acudiu Vilaça.
— É possível — respondeu secamente a inteligente Silveira. E, voltando-se para o Eusebiozinho, que se conservava ao lado dela, quieto como se fosse de gesso:
— Ó filho, diz tu aqui ao Sr. Vilaça aqueles lindos versos que sabes... Não sejas atado, anda!... Vá, Eusébio, filho, sê bonito...
Mas o menino, molengão e tristonho, não se descolava das saias da titi: teve ela de o pôr de pé, ampará-lo, para que o tenro prodígio não aluísse sobre as perninhas flácidas; e a mamã prometeu-lhe que, se dissesse os versinhos, dormia essa noite com ela...
Isto decidiu-o: abriu a boca, e como de uma torneira lassa veio de lá escorrendo, num fio de voz, um recitativo lento e babujado:

É noite, o astro saudoso
Rompe a custo um plúmbeo céu,
Tolda-lhe o rosto formoso
Alvacento, húmido véu...


Disse-a toda — sem se mexer, com as mãozinhas pendentes, os olhos mortiços pregados na titi. A mamã fazia o compasso com a agulha do crochet; e a viscondessa, pouco a pouco, com um sorriso de quebranto, banhada no langor da melopeia, ia cerrando as pálpebras.
— Muito bem, muito bem! — exclamou o Vilaça, impressionado, quando o Eusebiozinho findou coberto de suor. — Que memória! Que memória!... É um prodígio!...»
(Queirós, Eça de - Os Maias)

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