Aviso: na biblioteca de Jacinto não se aplicará o novo Acordo Ortográfico.

14 abril 2008

Retrato

Era um homem extraordinário mas, precisamente por isso, difícil de compreender. Contraditório, incoerente, pragmático e quixotesco, inteligente e casmurro. Frio e metódico em questões de trabalho, nas coisas que o apaixonavam perdia a frieza e tornava-se teimoso e fundamentalista.
Não se desviava um milímetro quando achava que tinha razão, mesmo que essa teimosia o viesse a prejudicar; e tantas vezes o prejudicou. Tantas vezes o ouvi dizer «maldito feitio o meu!».

Profundamente crente, nunca, até ao fim da vida, desistiu de tentar conciliar Fé e Razão porque, se a razão lhe dizia que a fé apenas pela crença é imprópria de um ser pensante, o coração lhe dizia que a existência sem Deus seria um absurdo incompatível com a razão.

A injustiça revoltava-lhe as entranhas. Ficava transtornado a ver o telejornal. Desligava a televisão e punha música. Não queria ver notícias de crianças raptadas, de pessoas que morriam a caminho do hospital porque tinham fechado a urgência mais próxima, não queria ver os encontros de políticos, com caterings de luxo, onde se discutia a redução da fome daqui a vinte anos.

Revoltava-o a injustiça mas também a hipocrisia a estupidez e a boçalidade que encontrava, em doses variáveis mas sem excepção, em todos os quadrantes políticos. Votava por descargo de consciência. Detestava todos os políticos porque não podia conceber que, mais de 30 anos depois do 25 de Abril, ainda houvesse aldeias sem saneamento básico e ainda houvesse necessidade de emigrar. Ele, que tinha crescido no tempo da Segunda Guerra, que tinha vivido o racionamento, que tinha começado a trabalhar aos doze anos e que tinha acreditado que os problemas do país eram culpa do Salazar, sentia-se defraudado pela política e pelos políticos.

Era convictamente republicano mas tinha espírito autoritário. A democracia, a tolerância, a conciliação soavam-lhe a fraqueza, a incompetência, a incerteza. Tinha muitas certezas que o tornavam frequentemente intolerante. Discordávamos muito e ele, rindo, dizia «pois, eu sei, tu achas que eu sou preconceituoso». O autoritarismo dele vinha das certezas que tinha e da convicção de que, enquanto se discute a melhor solução, o mundo não para à espera das decisões. Acreditava, porém, que a autoridade só devia ser praticada ao serviço do bem comum; a tirania era-lhe insuportável. Muitas das nossas discussões tinham por base essa ténue linha divisória entre autoridade e tirania.

Tinha um apurado sentido de honra e de dever. Não tolerava o laxismo, a pouca-vergonha, a falta de palavra, o dito-por-não-dito, a tibieza, a preguiça, a irresponsabilidade, o parasitismo. Era exigente, em primeiro lugar, consigo próprio.

Adorava música, era a sua maior paixão, mas a sua personalidade muito especial sempre o impediu de pensar sequer em viver da música, embora tenha tido essa oportunidade.

Era naturalmente bem disposto. O sentido de revolta não o tornava amargo nem triste. Amava a vida, adorava estar vivo, adorava tudo o que a vida tem de bom e valorizava sempre o lado bom de tudo. Amava a família, viveu para a família, a família era tudo para ele. Tudo o que fez, tudo o que deixou de fazer, tudo foi sempre a pensar na família. Nada lhe dava maior prazer do que estar em casa, numa grande almoçarada, rodeado do seu clã, todos a falar muito alto, todos a falar ao mesmo tempo. Casa de italianos, dizia a brincar, em alusão ao avô italiano, figura quase lendária que ele nunca chegou a conhecer mas sempre evocada nos anais familiares.
Foi assim que esteve, horas antes de partir. Sem que o soubesse (e o soubéssemos) estava a despedir-se. Partiu de surpresa, depressa e sem hesitação.
As olaias floriam.