Aviso: na biblioteca de Jacinto não se aplicará o novo Acordo Ortográfico.

25 fevereiro 2013

Explicação da Ausência

Desde que nos deixaste o tempo nunca mais se transformou
Não rodou mais para a festa não irrompeu
Em labareda ou nuvem no coração de ninguém.
A mudança fez-se vazio repetido
E o a vir a mesma afirmação da falta.
Depois o tempo nunca mais se abeirou da promessa
Nem se cumpriu
E a espera é não acontecer — fosse abertura —
E a saudade é tudo ser igual.

Daniel Faria
(1971-1999)

15 fevereiro 2013

Nausícaa a Ulisses

Pudera, meu Amor, trazer-te ao peito
Já despido de sal e maresias!
Ajustar-me entre o teu corpo e o meu leito,
adossar-me ao aroma que trazias

do mar, das dunas e do vento Leste,
da Penélope longínqua - longa espera! -
Da Tálassa sentindo o odor agreste
do vento enfunando uma quimera...

Se estás ao pé de mim sem estares comigo
é porque te amei sem te conhecer
e dei ao mar meus sonhos já desfeitos.

Se nunc'antes te deras por vencido
e à minha juventude vens render
é porque à lei do Amor estamos sujeitos.

(Inspirado no soneto de David Mourão Ferreira "Ulisses a Nausícaa")

14 fevereiro 2013

Sérgio Godinho - O primeiro dia


E pronto, agora deu-me para aqui. Excelente versão ao vivo. Excelente solo de piano. Excelente.

Sérgio Godinho - Espalhem a Notícia


Tive um namorado que andava sempre de viola às costas. Esta foi uma das primeiras canções que ele me cantou...



Espalhem a notícia
do mistério da delícia
desse ventre
Espalhem a notícia do que é quente
e se parece
com o que é firme e com o que é vago
esse ventre que eu afago
que eu bebia de um só trago
se pudesse

Divulguem o encanto
o ventre da que canto
que hoje toco
a pele onde à tardinha desemboco
tão cansado
esse ventre vagabundo
que foi rente e foi fecundo
que eu bebia até ao fundo
saciado

Eu fui ao fim do mundo
eu vou ao fundo de mim
vou ao fundo do mar
vou ao fundo do mar
no corpo de uma mulher
vou ao fundo do mar
no corpo de uma mulher
Bonita

A terra tremeu ontem
não mais do que anteontem
pressenti-o
O ventre de que falo como um rio
transbordou
e o tremor que anunciava
era fogo e era lava
era a terra que abalava
no que sou

Depois de entre os escombros
ergueram-se dois ombros
num murmúrio
e o sol, como é costume, foi um augúrio
de bonança
sãos e salvos, felizmente
e como o riso vem ao ventre
assim veio de repente
uma criança

Eu fui ao fim do mundo
eu vou ao fundo de mim
vou ao fundo do mar
vou ao fundo do mar
no corpo de uma mulher
vou ao fundo do mar
no corpo de uma mulher
Bonita

Falei-vos desse ventre
quem quiser que acrescente
da sua lavra
que a bom entendedor meia palavra
basta, é só
adivinhar o que há mais
os segredos dos locais
que no fundo são iguais
em todos nós

Eu fui ao fim do mundo
eu vou ao fundo do mim
vou ao fundo do mar
vou ao fundo do mar
no corpo de uma mulher
vou ao fundo do mar
no corpo de uma mulher
Bonita

13 fevereiro 2013

Memento, Homo, quia pulvis es... (II)



Diogo Dias Melgás (1638-1700)

Pro Cantione Antiqua. Dir. Mark Brown

Memento, Homo, quia pulvis es...

«Naquelas sepulturas, ou abertas, ou cerradas, o estão vendo os olhos. Que dizem aquelas letras? Que cobrem aquelas pedras? As letras dizem pó, as pedras cobrem pó, e tudo o que ali há é o nada que havemos de ser: tudo pó. Vamos para maior exemplo, e maior horror, a esses sepulcros recentes do Vaticano. Se perguntardes de quem são pó aquelas cinzas, responder-vos-ão os epitáfios (que só as distinguem). Aquele pó foi Urbano; aquele pó foi Inocêncio; aquele pó foi Alexandre; e este, que ainda não está de todo desfeito, foi Clemente.»


12 fevereiro 2013

Música e Amor

«Il n'y a pas de différence entre musique et amour: l'écoute d'une émotion authentique égare absolument.»

(Pascal Quignard - Vie secrète)

06 fevereiro 2013

SPA não adopta o novo acordo ortográfico perante as posições do Brasil e de Angola sobre a matéria

Na biblioteca de Jacinto congratulamo-nos com a decisão da Sociedade Portuguesa de Autores, não obstante o argumento apresentado - «não faz sentido dar como consensualizada a nova norma ortográfica quando o maior país do espaço lusófono (Brasil) e também Angola tomaram posições em diferente sentido» - ser um tanto perverso. Achará a SPA que, caso o Brasil não tivesse recuado, deveria adoptar o Acordo Ortográfico?
Eu acho que não e acho isso mesmo que Portugal tivesse apenas um ou dois milhões de habitantes. Mal de nós quando a salvaguarda da nossa cultura estiver dependente da demografia.
Também acho de muito mau tom apontar apenas um nome como responsável por toda a série de disparates que tem envolvido o AO. Porquê o Dr. Luís Amado? Mas foi só ele? Há um lençol de nomes que teremos de responsabilizar - e que a História, a seu tempo julgará - a começar pelo senhor Presidente da República, quando era Primeiro Ministro, e a acabar nos actuais governantes, passando por todos aqueles que, ao longo de mais de 20 anos - conforme os casos, por estupidez, negligência, incompetência, cobardia ou dolo - permitiram que chegássemos a este ponto.
Em todo o caso, a minha saudação à SPA. Parece que acordou. Continue assim que não vai mal.

«A SPA continuará a utilizar a norma ortográfica antiga nos seus documentos e na comunicação escrita com o exterior, uma vez que o Conselho de Administração considera que este assunto não foi convenientemente resolvido e se encontra longe de estar esclarecido, sobretudo depois de o Brasil ter adiado para 2016 uma decisão final sobre o Acordo Ortográfico e de Angola ter assumido publicamente uma posição contra a entrada em vigor do Acordo.

«Assim, considera a SPA que não faz sentido dar como consensualizada a nova norma ortográfica quando o maior país do espaço lusófono (Brasil) e também Angola tomaram posições em diferente sentido. Perante esta evidência, a SPA continuará a utilizar a norma ortográfica anterior ao texto do Acordo, reafirmando a sua reprovação pela forma como este assunto de indiscutível importância cultural e política foi tratado pelo Estado Português, designadamente no período em que o Dr. Luís Amado foi ministro dos Negócios Estrangeiros e que se caracterizou por uma ausência total de contactos com as entidades que deveriam ter sido previamente ouvidas sobre esta matéria, sendo a SPA uma delas. Refira-se que também a Assembleia da República foi subalternizada no processo de debate deste assunto.

«O facto de não terem sido levadas em consideração opiniões e contributos que poderiam ter aberto caminho para outro tipo de consenso, prejudicou seriamente todo este processo e deixa Portugal numa posição particularmente embaraçosa, sobretudo se confrontado com as recentes posições do Brasil e de Angola»

Lisboa, 9 de Janeiro de 2013

(Fonte: sítio web da Sociedade Portuguesa de Autores)

01 fevereiro 2013

A honrada Alemanha

Não resisto a transcrever um excerto de «O jogador», de Dostoievski - que estou a ler numa vetusta edição dos Livros RTP - e que me fez pensar nos tempos que estamos a viver.

«Eu preferiria - disse - passar toda a vida numa tenda de quirguizes nómadas em vez de adorar o ídolo alemão.
- Que ídolo - perguntou o general, que começava a aborrecer-se seriamente.
- O modo alemão de acumular riquezas. Não estou aqui há muito tempo mas o que pude ver e comprovar chega para revoltar o meu sangue de tártaro. Na verdade, não quero essas virtudes! Ontem tive tempo de andar umas dez verstas pelos arredores. Pois bem, é exactamente como nos livrinhos ilustrados de moral alemã: em cada casa há um Vater, terrivelmente virtuoso e extraordinariamente honrado. Tão honrado que temos medo de nos chegarmos a ele. Não posso suportar as pessoas honradas que inspiram medo. Cada um destes Vater tem a sua família e à noite, reunidos todos eles, lêem em voz alta livros instrutivos. Sobre o telhado da casa rumorejam os ulmos e os castanheiros. O Sol que se põe, a cegonha no telhado, tudo isto é extraordinariamente poético e comovedor. Se não o incomoda, general - continuei - permito-me referir algo ainda mais comovedor. Lembro-me que o meu falecido pai, também sob as tílias, diante da casa, lia-nos todas as tardes, a minha mãe e a mim, livros desse género... Posso, pois, avaliar bem tudo isso. Bom, aqui todas as famílias se encontram sob o jugo e a submissão mais completa do Vater. Trabalham como bois e acumulam dinheiro como judeus. Supunhamos que o Vater reuniu já uns tantos florins e espera legar ao primogénito o seu táler ou a sua parcela de terreno. Para isso, não dá qualquer dote à filha e esta fica para tia. Para isso vende o filho mais pequeno, como criado ou como soldado, e este dinheiro é incorporado no capital familiar. Faz-se assim, acreditem-me. Procurei informar-me. E fazem tudo isto movidos pela honradez, por um exaltado espírito de honradez, até ao ponto de o filho mais pequeno, que foi vendido, estar convencido de que o venderam movidos pela honradez. E isto é o ideal: a própria vítima alegra-se por ter sido oferecida em holocausto. Que acontece depois? As coisas também não correm de feição para o primogénito. Há ali uma certa Amalchen à qual o seu coração se sente unido. Mas não pode casar-se porque não arrolou os florins necessários para fazê-lo. Ficam também à espera, digna e sinceramente, aceitando o holocausto com um sorriso nos lábios. Amalchen continua extenuada e fraca. Finalmente, ao cabo de vinte anos, os bens foram multiplicados: dispõem dos florins honrada e virtuosamente poupados. O Vater dá a bênção ao primogénito, de quarenta anos, e à Amalchen, de trinta e cinco, peitos flácidos e nariz avermelhado. Chora, dá-lhes conselhos e morre. O primogénito transforma-se, por sua vez, num virtuoso Vater e a sua história volta a repetir-se. Aos cinquenta ou sessenta anos, o neto do primeiro Vater dispõe, na verdade, de um capital considerável que lega ao seu filho e este ao seu e assim, ao cabo de cinco ou seis gerações, deparamos com um barão Rotschild ou um qualquer Goppe & C.ª. Não é um espectáculo grandioso? Um trabalho permanente de cem ou duzentos anos, paciência, inteligência, honradez, carácter, decisão, cálculo, a cegonha no telhado! Que mais querem? Porque nada há superior a isto e, a partir deste ponto de vista, começam a julgar o mundo e a castigar os culpados, quer dizer, aqueles que se diferenciam deles um milímetro que seja. Eis a questão: prefiro a agitação no estilo russo ou enriquecer à roleta. Não quero ser Goppe & C.ª nas próximas cinco gerações. Tenho necessidade de dinheiro para mim próprio e não me considero como um apêndice fornecedor do capital. Sei que disse muitas barbaridades mas não importa. Essas são as minhas convicções.»

(Dostoievski, Fedor - O jogador. Trad. Armando Luiz)