Aviso: na biblioteca de Jacinto não se aplicará o novo Acordo Ortográfico.

24 março 2017

In memoriam de Raul Vital


Conheci o Raul em 1992. Foi meu colega de turma (e do Jorge), durante dois anos, no Curso de Especialização em Ciências Documentais da Faculdade de Letras de Lisboa. Terminado o curso, quase perdemos o contacto, embora ainda nos tenhamos encontrado num ou noutro dos poucos jantares de turma que ainda se fizeram até ao final da década.
Em 2002, quando eu e o Jorge nos inscrevemos na Juventude Musical Portuguesa, logo numa das primeiras aulas de Prática Coral, deparámos com ele, no naipe dos Baixos, coisa que nos parecia quase surreal pois nunca imagináramos que o nosso colega arquivista, sempre de poucas palavras, também se interessasse por música. Foi nessa altura que descobrimos que se interessava por música, por teologia e por uma quantidade de outras coisas das quais nunca falava com ninguém.
Pouco anos depois (não sei ao certo quando) voltámos a encontrá-lo na Associação Portuguesa de Arqueologia Industrial, da qual eu era sócia desde 1990 mas sem que nunca me tivesse cruzado com ele. O Raul teve um papel determinante numa fase em que aquela associação estava sem rumo e chegou a apresentar uma lista e a ganhar a Direcção. O Raul, mais uma vez, a surpreender-nos.
Um dia, em 2005, talvez em Maio (eu já tinha entregue a dissertação de mestrado e também já tínhamos a data de casamento marcada), encontrámos o Raul, em Entrecampos. Disse-nos que ia a caminho do ensaio do Grupo Vocal Arsis e convidou-nos para o acompanharmos. Subimos com ele até ao ICS, falámos com o Paulo Brandão (com quem eu sempre quisera cantar!), fizemos os testes de voz e - uma vez que o ano coral estava a acabar - combinámos que entraríamos, em Outubro, depois do regresso de lua-de-mel.
Nos últimos anos descobri do Raul a sua escrita, reveladora de uma personalidade muito mais densa e brilhante do que a sua atitude discreta e até apagada permitia adivinhar.
O Raul fez parte intermitente da minha história de vida, ao longo de vinte e cinco anos, e a ele devo, com gratidão, a entrada para o Arsis.
Vi-o pela última vez há três dias, no Hospital do SAMS. Disse-me que estava a escrever um artigo sobre os aguadeiros de Lisboa.
Já não o vai acabar. Não sei quantos mais escritos terá que nunca viram a luz do dia.
Até sempre, Raul. Boas cantorias, lá para onde foste.


(Foto de Odete Baptista)

20 março 2017

No primeiro dia da Primavera

DE TARDE
(Cesário Verde)

Naquele piquenique de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!